Técnico gay desabafa sobre carreira sem poder se assumir: "Uma guerra diária"

Em entrevista anônima ao podcast ge "Nos Armários dos Vestiários", treinador conta que reprime desde a infância os desejos sexuais para se manter trabalhando no futebol

| GLOBOESPORTE.COM / JOANNA DE ASSIS


Banco de reservas do Maracanã com avisos de distanciamento social — Foto: Thiago Ribeiro / AGIF

O currículo dele é vitorioso. Em pouco mais de 30 anos de estrada como treinador, são mais de dez conquistas, incluindo o título de melhor treinador de alguns campeonatos que disputou. Com a habilidade de comandar elencos menos estrelados, costumava incomodar os times grandes, e mais de uma vez teve seu nome cotado para assumir um desses gigantes do futebol brasileiro.

Mas a carreira não decolou como poderia para este treinador, que aqui chamaremos de "Leonardo", para preservar sua identidade. Os boatos sobre sua sexualidade foram cruciais para travar suas principais negociações no futebol.

Leonardo concordou que sua história fosse publicada de forma anônima. Por isso, alguns dados foram omitidos. O relato dele é um dos destaques do oitavo episódio do podcast ge "Nos Armários dos Vestiários" (ouça abaixo).

— Eu já tive meus momentos. Fui eleito melhor treinador de Estadual, eliminei time grande com o estádio lotado. Nessas horas eu pensava: "Chegou a minha hora". Eu ficava na expectativa e na esperança de ser reconhecido pelo meu trabalho. Teve uma vez que fiquei dois dias sem dormir porque os times grandes me queriam. Mas nunca deu certo.

— Eu não queria aceitar, mas sempre soube o motivo para a minha carreira não decolar. Algumas vezes não consegui controlar os desejos que eu sentia e falei o que não podia, para quem não deveria. A minha fama me prejudicou — contou o técnico, que se destacou em um dos principais polos do futebol brasileiro e hoje comanda uma equipe mais modesta.

Enquanto o treinador trabalhava na beirada do gramado para se destacar, o desejo de viver como um homem gay o consumia, mas ele não via qualquer possibilidade de se assumir. Por precisar reprimir o sentimento, admitiu que já teve atitudes reprováveis na sua posição de autoridade como treinador.

— Eu sempre tive desejos, entendeu? Foi uma coisa que eu sempre relutei, brigo até hoje com isso. Caso de você olhar, falar… É uma coisa que eu brigo para caramba.

— Fui batizado na igreja, entrei para a igreja com nossa família e tudo. E é uma coisa que, eu repito, sempre lutei, minha esposa nunca soube disso. É uma guerra ... Uma guerra diária. É você lutando contra você mesmo. E, quando é mais jovem, você erra mais. Mais experiente, você erra menos. De uns anos para cá, não tenho mais errado. Lá no início, sim, fui gay, mas não dei continuidade. Foi sempre uma luta particular minha. Nunca fiz nada com atleta, mas já falei, já olhei, já busquei, já liguei… De verdade mesmo, de coração? Eu luto desde que nasci.

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Quando o assunto foi o boicote diretamente, Leonardo contou que o questionamento sobre não ter alcançado o topo na carreira vinha muitas vezes dos próprios companheiros.

— Esse fato de as pessoas falarem que eu não cresci no futebol por isso… Porque falam… Até as pessoas que trabalham comigo, né? Meus amigos que trabalham comigo há anos, preparador físico, auxiliar, eles sempre falavam: "Por que a gente não consegue chegar?". E eu guardava para mim.

— Eu sabia que o nosso potencial era para estar em outro nível. E a gente não consegue… E eu me perguntava: "Pô, será que é por isso? Será que sabem de algum fato em relação a isso?". Sempre me questionei: "Por que todo mundo consegue, e eu não? Eu tenho vários títulos. Poucos treinadores conseguem isso, poucos…".

Veja outros trechos da entrevista:

Homossexualidade na adolescência e opressão

— Vivi como gay até a adolescência, tive as minhas experiências, mas comecei a namorar uma garota quando eu era ainda muito jovem e jogava ainda. Frequentava a igreja com a minha família e lutava para enterrar isso dentro de mim.

Primeiro alerta veio de um dirigente

— Era de um clube pequeno, anos atrás. Ele falou abertamente: "Oh, cuidado, tem algumas coisas aí que podem te prejudicar, tem gente falando da sua vida, você trabalha com garotos, abre o olho". Eu tinha a confirmação de que não foi por falta de capacidade que não cheguei lá.

Boicote do primeiro time grande

— Eu chego a perder a linha ouvindo isso, porque imagina me explicando para a minha mulher e meus filhos que eu não recebi um emprego porque as pessoas acham que eu sou gay? Isso me fez pensar que perdi outras chances pelo mesmo motivo. E como eu posso mudar isso? De que forma eu vou agir? E isso já foi há tanto tempo. Eu passei já pelo meu melhor momento e vi minhas oportunidades passando.

Pedido de perdão a um atleta

— A vida inteira eu vivo assim, batendo em mim mesmo. Eu não falava com ninguém sobre isso há mais de 30 anos. É uma coisa que eu sempre lutei, até hoje só conversei com um amigo porque precisava de ajuda, aí eu sentei com ele e falei. Eu tinha 18 anos. Nunca mais falei com ninguém sobre isso, nem com meus irmãos e amigos, até falar agora. Na realidade, alguns atletas com quem trabalhei sabem, teve até um que pedi perdão pelo fato de olhar para ele diferente e falar o que eu não devia. É uma luta. É uma luta que eu sempre tive. Eu brigo mesmo, para caramba, todo dia.

Planos para o futuro

— Eu vou ter que batalhar, não sei como. Se eu falasse abertamente e publicamente, iria para o tudo ou nada, mas ainda não estou preparado para isso. Eu tenho esposa, tenho filhos, é complicado. Quem sabe um dia? Até lá seguirei trabalhando.

+ Ouça outros episódios de Nos Armários dos Vestiários

Apresentação e texto final: Joanna de Assis e William de LuccaDireção de conteúdo: Joanna de Assis e de Bruno MaiaDireção geral: Bruno Maia DiretorProdução executiva: Milena GodolphimCoordenação de produção: Joanna de Assis, Milena Godolphim e Rafael BarrosGerência de Conteúdo: Bruno RoedelRoteiristas e pesquisadores: João Pedro Castro e Carlos Guilherme VogelChefia de pesquisa: Joanna de Assis, William de Lucca, Jotapê, Vogel, Oscar Neto, Felipe Mondego e Luiza LourençoGravações, mixagens e identidade sonora: Alexandre Griva (Melhor do Mundo Estúdios)Workflows e processos: Vivi Alexandrino Produção (ge): Lucas Garbelotto e Pedro SuaideCoordenação de podcasts (ge): Rafael BarrosAnálise de Produto (Globo): Letícia NunesGerência de conteúdo (ge): Andre AmaralGerência de Podcasts (Globo): Fábio Silveira



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