De personal a motorista: fim dos estaduais expõe vácuo e faz atletas buscarem outras profissões

Jogadores procuram ocupação em novas áreas em meio à instabilidade profissional; calendário nacional ficou restrito a apenas 14% dos clubes do país no último ano

| GLOBOESPORTE.COM / HEITOR MACHADO


Fim dos estaduais e a nova jornada de trabalho no futebol brasileiro

A academia de Tiago vai ficar desfalcada por um tempo. O telefone do personal tocou na última semana, e a oportunidade de disputar mais uma competição como atleta profissional de futebol bateu à porta.

Natural do Amazonas, o volante vai deixar a capital manauara para jogar em Roraima. O estadual local começou no fim de março e deve terminar no meio do ano. Com mais de uma década dedicada ao futebol, Tiago acostumou-se com a instabilidade.

— Tem período que é realmente muito difícil. Às vezes, o futebol dá uma parada, não é o ano todo, então temos que buscar outra remuneração. Acontece com frequência com a maioria, de chegar ao fim o campeonato estadual e você ficar desempregado, esperando aparecer alguma coisa — afirmou.

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Aos 31 anos, o volante (e personal) acumula passagens por clubes de Santa Catarina, São Paulo e Goiás, além de Amazonas e Roraima. Entre as andanças pelo Brasil, decidiu cursar Educação Física e abriu recentemente a academia, fonte de renda que lhe dá segurança em meio à imprevisibilidade do mundo da bola.

— Consegui iniciar a faculdade e hoje também sou personal. Abri o espaço recentemente e hoje estou conciliando o futebol com a academia. Então, quando não consigo calendário para jogar, me mantenho com essa outra fonte de renda — contou.

Privilégio de poucos

A festa dos campeões estaduais no final de semana contrasta com a preocupação da esmagadora maioria dos atletas profissionais do país.

Com quatro divisões, o calendário oferta 124 vagas distribuídas entre Série A, B, C e D. No último ano, de acordo com a CBF, o Brasil teve 863 clubes profissionais registrados e em atividade . Ou seja, 86% ficaram fora das divisões nacionais, limitados aos torneios estaduais de curta duração.

— O atleta que consegue jogar um estadual e depois uma vaga na Série D é quase que uma bênção para ele, porque, se não estiver nesse pequeno mercado de clubes que vai jogar a quarta divisão, o ano dele acabou. Um ano de quatro meses — afirmou Sampaio.

A federação conta atualmente com cerca de 17 mil atletas profissionais registrados. Recentemente, a entidade se posicionou contra a ampliação do limite de estrangeiros em competições nacionais (de sete para nove por jogo) por entender que a medida prejudica o desenvolvimento dos jogadores brasileiros.

— O mercado não comporta todo mundo. O problema poderia ser amenizado com a criação de uma quinta divisão, mas desde que com estrutura e apoio. Tem de exigir e cobrar organização, estrutura, apenas clubes que cumpram suas obrigações trabalhistas. Caso contrário, vamos gerar um mercado de mentiras, uma ilusão — acrescentou Sampaio.

Considerando apenas a primeira divisão de cada estado, 274 clubes participaram dos torneios regionais em 2024.

Em alguns estados, como Amapá, Acre, Rondônia e Roraima, os campeonatos são realizados em período específico, com início entre fevereiro e março, e final previsto para maio ou junho. No geral, porém, a grande maioria terminou no último final de semana, antes do início do Campeonato Brasileiro.

O estadual de São Paulo, com 16 participantes, é o principal em termos de número de equipes . Na sequência, com 12, estão Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Goiás e Pará. O Rondoniense, com seis equipes, é o menor .

Questionada pela reportagem, a CBF informou via assessoria de imprensa que "o caminho é sempre dialogar com as federações, clubes e detentores de direitos de transmissão, para seguir avançando a cada ano no calendário, o que vem acontecendo nos últimos anos".

Preparador de goleiros e motorista (nas horas vagas)

A dura realidade se impôs ao goleiro Gustavo, de Marechal Deodoro, em Alagoas. Com passagens pelas categorias de base de Sport e Grêmio, o goleiro foi companheiro de nomes que atingiram a primeira prateleira do futebol nacional, como Renê (Inter), no Sport, e Léo Jardim (Vasco) e Pablo (Botafogo), no Grêmio.

Aos 30 anos, Gustavo disputou o último Campeonato Alagoano pelo Coruripe. Em anos anteriores, com a ausência de competições, encontrou alternativas no próprio clube.

— Recebi convite para trabalhar na preparação dos goleiros do time sub-20. Nesse meio tempo recebi um convite do Baré, de Roraima, para jogar, e depois atuei novamente como preparador — contou.

— Neste cenário é importante ter contatos, amizade, isso é o que nos emprega. É uma competição difícil, o famoso DVD com os melhores momentos ajuda, utilizamos muito as redes sociais também. É dessa forma que tentamos nos manter empregados no futebol, mas nem sempre é possível.

As boas relações nem sempre garantiram oportunidades no futebol, mas foram importantes para buscar ocupação fora dele.

— Também trabalhei como motorista. O presidente (do Coruripe) Franciney Joaquim também é vereador na cidade, e ele me convidou para ficar como motorista na prefeitura. São alternativas que a gente busca para lidar com essa realidade — contou o jogador.

Pai de Heitor, de quatro anos, Gustavo tira lições da própria trajetória para orientar o filho futuramente, caso o menino queira seguir o mesmo caminho.

— Se quiser jogar bola, claro, terá nosso apoio. Mas meu pensamento é que foque na formação, para caso não vire atleta, seja um advogado, médico, motorista ou qualquer outra atividade. Que seja primeiro um cidadão honesto, homem na concepção da palavra.

Bar do pai, loja com a companheira

Do outro lado do país, em Santa Catarina, o volante Arthur Machado viveu situação semelhante. Ele encontrou na própria estrutura familiar alternativa para seguir trabalhando. Natural de Florianópolis, o jogador acumula passagens por clubes de Goiás, Alagoas e Rio Grande do Sul, além do estado de origem.

— Meu pai tem um bar, então trabalhava na cozinha quando estava desempregado no futebol. Também tenho uma loja de roupa feminina com minha mulher, conseguia ajudar como caixa e também realizando entregas - contou.

Arthur passou pelas categorias de base do Palmeiras e chegou a treinar com o time principal do Verdão.

— Passei um tempo e foi especial. Fui companheiro do Gabriel Jesus, realizei alguns treinos no profissional. O técnico na época era o Marcelo Oliveira, com Valentim como auxiliar.

O último clube foi o Planaltina (DF), no ano passado. Atualmente, o volante diz que não pretende seguir carreira.

— Já passei por essa situação algumas vezes e é comum, muitos companheiros também enfrentam essa realidade de jogar por quatro meses e depois só no ano seguinte — completou.



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