Náutico usa associação sem fins lucrativos para movimentar dinheiro do clube e driblar credores

Caso vem à tona após Palmeiras ir à Justiça contra clube pernambucano, condenado em primeira instância por fraude

| GLOBOESPORTE.COM / JOãO DE ANDRADE NETO E RODRIGO CAPELO


Edno Melo e Diógenes Braga, dirigentes do Náutico — Foto: Daniel Gomes

Um processo do Palmeiras deu luz a uma fraude que o Náutico cometeu para não pagar credores, motivo para questionamentos sobre falta de transparência e controles internos. A prática não é considerada crime, porém se enquadra como ilícito civil, e pode causar invalidação de contratos assinados e pagamento de indenização.

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A estratégia foi executada por Diógenes Braga e Edno Melo, respectivamente presidente e ex-presidente do clube alvirrubro. Eles são os principais responsáveis pelo uso da conta corrente de uma associação civil sem fins lucrativos, para movimentar parte do dinheiro do Náutico fora do alcance de execuções judiciais, com o objetivo de fugir dos bloqueios dos credores.

Trata-se da Recreio Fluvial, associação sem fins lucrativos criada em outubro de 2016. Inicialmente, tinha como objetivo arrecadar doações para obras de recuperação do estádio dos Aflitos, reaberto em dezembro de 2018. A entidade, no entanto, também foi usada para outros propósitos.

Em 1º de novembro de 2018, ainda durante o primeiro mandato de Edno na presidência alvirrubra, o Náutico firmou um "instrumento particular de mútuo financeiro" (em português compreensível: um empréstimo) com a Recreio Fluvial. O crédito foi de R$ 807 mil.

Como forma de pagamento ao empréstimo, o clube cedeu os direitos comerciais sobre uniformes e espaços publicitários nos Aflitos até dezembro de 2019. Pela literalidade do contrato, toda a verba arrecadada no período pertenceria à Recreio Fluvial .

O contrato deste mútuo, obtido pelo ge, carrega as assinaturas de Edno e Diógenes – à época, vice-presidente do clube. Eles também eram presidente e diretor comercial da Recreio Fluvial, respectivamente, e estavam cadastrados como responsáveis legais pela associação.

"Em 2019, choveram bloqueios. Para tentarmos receber o dinheiro do patrocinador máster, fizemos o contrato de mútuo financeiro, em que colocamos a Recreio como credora do Náutico. Utilizamos esse meio jurídico para liberar o dinheiro", explicou Diógenes, hoje presidente, à reportagem.

- Conseguimos evitar vários bloqueios, contudo dois permaneceram. Um do Derley, em que fizemos acordo e já foi quitado, e outro do Palmeiras, que segue tramitando com um saldo bloqueado – concluiu o presidente.

Acusação e condenação

Em ação ajuizada em 27 de fevereiro de 2018, o Palmeiras exigia o pagamento de uma dívida de R$ 440 mil, referente a empréstimo de jogadores. A Justiça determinou o pagamento por parte do clube pernambucano, que não foi feito. Veio, então, a ordem de bloqueio das contas do Náutico. Não havia saldo.

Atrás de todas as fontes de receitas do Náutico, o Palmeiras descobriu que o clube havia fechado com novo patrocinador, o Real Hospital Português de Beneficência em Pernambuco, no dia 5 de novembro de 2018. Este contrato não foi fechado diretamente com o Náutico, e sim por meio da Recreio Fluvial, por conta do empréstimo cedido quatro dias antes. Mesmo assim, os paulistas conseguiram o bloqueio.

Formou-se então uma disputa judicial em torno dos valores. Enquanto a Recreio Fluvial tentava desbloquear o dinheiro, com o argumento de que a associação não era a devedora, os dirigentes do Palmeiras acusaram os credores de má-fé e se basearam nas semelhanças entre as duas associações, que tinham as mesmas pessoas em seus comandos .

Na 13ª Vara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, o juiz Luiz Antonio Carrer redigiu a sentença sobre o caso em 14 de outubro de 2021. O magistrado afirmou que a cessão dos direitos comerciais relacionados havia sido feita para fraudar a execução judicial.

O juiz chamou atenção para o fato de que a negociação entre Náutico e Recreio Fluvial foi feita depois de determinada a execução de suas receitas, o que indica a má-fé por parte dos dirigentes. Ele também sublinhou que os cartolas faziam parte de ambas as associações.

"Assim, flagrante a má-fé do terceiro, ora embargante, que possuindo em sua diretoria membros e dirigentes da parte executada utiliza-se de ardil para fraudar a execução movida pela parte embargada", decidiu Luiz Antonio Carrer na sentença.

O Náutico teve sua argumentação negada pelo juiz em primeira instância, que invalidou o contrato do clube com a associação Recreio Fluvial e o condenou a arcar com custas e despesas processuais, cerca de R$ 10 mil.

A disputa judicial ainda não acabou. Em 22 de outubro de 2021, a Recreio Fluvial apresentou recurso ao Tribunal de Justiça paulista, em segunda instância, e também fez o requerimento para que tenha justiça gratuita, sob a alegação de que não possui condições financeiras para pagar as custas processuais. O caso aguarda novas decisões para ter seu desfecho.

Consequências legais

O ge consultou três advogados para entender o que caracteriza a fraude aos credores e, principalmente, quais são as consequências para quem a pratica. São eles Anderson Schreiber, professor titular de Direito Civil da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj); Fernando Barbalho, especializado em Direito Desportivo; e João Marcos Siqueira, da área trabalhista, também atuante no esporte.

Caso o clube pernambucano seja condenado em definitivo, há duas punições cabíveis. Todos os contratos assinados são invalidados , como decidiu o juiz neste início de processo, e pode haver indenização por perdas e danos por parte dos credores . Esse tipo de fraude não é um crime, mas um ilícito civil, como denominam advogados e juristas.

Outros contratos de patrocínio

A reportagem teve acesso a cinco contratos de patrocínio firmados pelo Náutico durante a administração de Edno Melo em 2019. O primeiro foi validado apenas quatro dias após a assinatura do "empréstimo" entre o clube e a Recreio Fluvial. Trata-se do acordo com o então patrocinador máster, que ocupou a propriedade mais valiosa do uniforme.

Neste acordo, a empresa se comprometeu a pagar R$ 720 mil de forma parcelada. O primeiro depósito estava previsto para 9 de novembro de 2018, no valor de R$ 90 mil. A partir de então, haveria a cobrança de dez parcelas, de R$ 63 mil cada, em todo dia 1º de cada mês. O contrato previa o repasse a uma conta bancária na Caixa Econômica Federal.

Também houve a participação da Recreio Fluvial em outros dois negócios. Com uma redes de supermercados, representadas por uma agência de publicidade, compraram uma cota de patrocínio por R$ 60 mil para um jogo específico – o clássico contra o Santa Cruz pela Série C de 2019. E uma fabricante de produtos de limpeza se comprometeu a pagar outros R$ 77 mil, para estampar a logomarca nos bancos de reservas dos Aflitos.

Nos outros dois contratos obtidos pelo ge, nos valores de R$ 96 mil e R$ 15 mil, a relação se deu diretamente entre as marcas e o Náutico. As propriedades comerciais tratavam de exposição no uniforme alvirrubro. Em tese, esses são os únicos acordos que deveriam aparecer nos livros contábeis do clube de futebol como receitas . Os demais deveriam ter sido contabilizados pela Recreio Fluvial, que detinha os direitos comerciais.

Associação problemática

A Associação Recreio Fluvial, que tem sede na cidade de Surubim, a 165 quilômetros de Recife, diz em seu estatuto que a sua finalidade é:

– A arrecadação de verbas através de fomento de potenciais patrocinadores, criação de campanhas de arrecadação e doações, elaboração de projetos de engenharia e marketing, tudo com o fim de colaborar com a viabilização e realização da reforma e reabertura do estádio dos Aflitos, com o objetivo de permitir o retorno dos jogos de futebol profissional àquela praça desportiva.

O estádio foi reaberto no dia 16 de dezembro de 2018, pouco mais de um mês após a assinatura do contrato de empréstimo feito entre a Recreio Fluvial e o Náutico.

– A Associação Recreio Fluvial não possui fundo social e não distribui entre seus associados, conselheiros, diretores, empregados ou doadores eventuais excedentes operacionais, bruto ou líquido (...) e os aplica integralmente na consecução do seu objetivo principal que é a reforma e reestruturação do Estádio dos Aflitos – estabelece estatuto da entidade.

Mandatário alvirrubro até dezembro de 2021, Edno Melo deixou a presidência da Recreio Fluvial em setembro de 2019. A partir daquele mês, o cargo na associação alternativa foi assumido por Roberto Andrade, atual primeiro secretário do Conselho Deliberativo do Náutico.

Na ocasião, o Conselho Fiscal da associação foi extinto, assim como alguns cargos, como os de diretor jurídico e diretor comercial, então exercido por Diógenes Braga. Atualmente, o CNPJ da Recreio Fluvial está inativo junto à Receita Federal por "omissão de declarações".

Questionamentos internos

No âmbito do Conselho Deliberativo do Náutico, os fatos relatados nesta reportagem foram levados ao conhecimento de seu presidente, Alexandre Carneiro, por Tatiana Roma de Brito, jornalista e conselheira do clube alvirrubro. O relatório escrito por ela descreve a operação com a Recreio Fluvial, a acusação do Palmeiras e a decisão desfavorável.

– Causa estranheza e perplexidade, não só a falta de clareza em relação à citada operação financeira, mas também, e principalmente, quanto à confusa e pouco transparente relação até hoje mantida entre o Clube Náutico Capibaribe e a Recreio Fluvial, cenário que gerou recentemente, inclusive, a renúncia do senhor Rafael Marinho, vice-presidente da Recreio Fluvial, conforme ofício em anexo, datado de 16 de junho de 2022 – diz trecho do relatório, que segue.

– Dentre as razões ali expostas, constam a ausência de informações e prestações de contas sobre as contas bancárias da Recreio Fluvial, bem como quem as movimenta . E mais, pasmem, faz menção ao fato de haver procuração outorgada ao senhor Erisson Rosendo de Melo, irmão do então presidente Edno Melo e, à época, superintendente financeiro do Clube Náutico Capibaribe, o que leva a crer que ele tinha acesso irrestrito, tanto às contas do clube, quanto a da Recreio Fluvial.

A reportagem tentou entrar em contato com Rafael Marinho, por telefone e via aplicativo de mensagem, mas não obteve sucesso.

O documento em que Tatiana relata a situação ao presidente do Conselho Deliberativo está datado de 27 de junho de 2022. Em novembro de 2021, a conselheira prestou queixa contra Erisson Rosendo de Melo, irmão de Edno, por "importunação sexual". O caso corre na Justiça.

O que dizem os envolvidos

Edno Melo, ex-presidente

Procurado pela reportagem, Edno não quis se pronunciar.

Diógenes Braga, presidente

De acordo com o cartola, como já transcrito no início desta reportagem, o empréstimo firmado com a Recreio Fluvial foi um "meio jurídico" para que o Náutico recebesse o dinheiro de patrocinadores, sem que a quantia fosse bloqueada pela Justiça junto à fonte pagadora.

Diógenes afirma que todas as verbas movimentadas pela Recreio Fluvial estão dentro da contabilidade do Náutico. O dinheiro, segundo o dirigente, foi utilizado pelo clube para pagamento de despesas.

– Todas as prestações de contas [da Recreio Fluvial] são feitas dentro da contabilidade do clube. Agora, se você me perguntar com o que foi gasto, eu não sei. Não tenho essa memória. Mas certamente a Recreio pagou despesas do clube, como paga o tempo inteiro – assegurou o atual presidente.

A reportagem conferiu as documentações contábeis publicadas pelo clube alvirrubro entre 2018 e 2021. A falta de transparência é flagrante em todas as versões já publicadas, com a ausência do parecer da auditoria externa e das notas explicativas. De qualquer maneira, nenhum balanço ou balancete aponta o nome da Recreio Fluvial.

– A Recreio Fluvial foi uma associação criada em 2016 e que teve e continua tendo como objetivo fazer toda a gestão financeira da obra dos Aflitos. Essa captação de recursos é feita em sua grande maioria por doações. Hoje a associação continua em atividade e é extremamente importante. Não é segredo pra ninguém e nunca foi. Todo mundo tem a conta da Recreio. Ele é usada inclusive para a captação de bichos (premiações pagas aos atletas) – afirmou Diógenes.

– Quando precisamos fazer algumas intervenções no estádio para termos os laudos, essas intervenções foram feitas pela Recreio. E teve o problema recente do centro de treinamento [quando a pista de acesso desmoronou]. A obra vai ficar perto de R$ 200 mil, e todo o pagamento dessa reforma foi feito pela Recreio. É uma associação ativa e que ajuda enormemente o clube nas despesas do dia a dia e despesas extraordinárias – finalizou o dirigente, que negou, no entanto, que o pagamento dos salários dos atletas também seja feito pela associação.

Diógenes não soube explicar o motivo de o CNPJ da Recreio Fluvial estar inativo na Receita Federal por "omissão de declaração".

Gustavo Ventura, ex-presidente do Conselho Deliberativo

O ge também ouviu o presidente do Conselho Deliberativo do Náutico entre 2016 e 2019, Gustavo Ventura, que confirmou ter conhecimento da existência da Recreio Fluvial, com direito a fazer doações para a entidade. Porém, ele disse desconhecer a assinatura do "instrumento particular de mútuo financeiro", firmado entre Edno Melo e Diógenes Braga, e acrescentou que o acordo não precisaria passar pelo crivo do Conselho.

– Lembro que o Náutico utilizava a Recreio para evitar bloqueios na Justiça, mas não estou lembrado desse instrumento de mútuo financeiro. De toda forma, Edno, como presidente do executivo, tinha autonomia para assinar esse contrato. Não é uma matéria que passa pelo Conselho.

O ex-presidente do Conselho Deliberativo também endossou as palavras de Diógenes Braga ao afirmar que todos os recursos que passaram pela Recreio Fluvial foram declaradas no balanço do clube.

Marcos Lavor, presidente do Conselho Fiscal

Já o atual presidente do Conselho Fiscal do Náutico, Marcos Lavor, afirmou não ter informação de que as prestações de contas da Recreio Fluvial estão dentro da contabilidade do clube. E nem da existência do "instrumento particular de mútuo financeiro", assinado em 2018.

– Não tenho informação se esse dinheiro entrou, se não entrou, se foi feito empréstimo. Isso não é parte de análise do Conselho Fiscal, porque ele trabalha exclusivamente com as contas do Náutico. O que o executivo presta conta ao Conselho são as contas do Náutico. Esse contrato [instrumento particular de mútuo financeiro] não foi apresentado.

Alexandre Carneiro, presidente do Conselho Deliberativo

O atual presidente do Conselho Deliberativo, Alexandre Carneiro, que era vice-presidente jurídico do clube em 2019, afirmou que as denúncias feitas por Tatiana Roma estão sendo apuradas pelo órgão.



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