Ao perder Willian, futebol brasileiro dá outra mostra do buraco em que se meteu

Após saída do meia, Fágner é a mais nova vítima da cultura de abusos no que cerca o jogo

| GLOBOESPORTE.COM / CARLOS EDUARDO MANSUR


Willian em Flamengo x Corinthians — Foto: Thiago Ribeiro/AGIF

Não chegou a um ano a mais recente passagem de Willian pelo Corinthians. E como neste período o meia não produziu tantos gols ou assistências quanto se esperava, era previsível que o debate em torno do desempenho do jogador monopolizasse as atenções.

Houve até quem se apropriasse das estatísticas para declarar vitória numa cruzada pró-futebol doméstico. Se Willian, jogador prestigiado na Premier League, não desequilibrou jogos no Brasileirão, eis uma prova inequívoca de que nosso jogo local não é assim tão ruim. É de fato sedutor ignorar todo o contexto econômico do jogo global e o caráter exportador das periferias do futebol moderno. E pior, ao centrar a discussão sobre Willian nos gols e assistências, perde-se o essencial: o aspecto humano, o ambiente de abusos em torno do jogo, a maior das patologias do futebol brasileiro atual. Nós não vencemos, longe disso. Das razões que fizeram o Brasil perder um jogador de Premier League à forma como o Corinthians se posicionou, o que se viveu nas últimas horas foi um painel do buraco em que nos metemos.

O debate sobre desempenho comete um erro crucial: transforma em nota de rodapé o fato mais importante da história. O Brasil perdeu, e seguirá perdendo de goleada enquanto não aparecer gente disposta a, de verdade, trabalhar para transformar a realidade violenta e permissiva que cerca o futebol no país. Willian pode ter tido suas lesões, pode ter sentido efeitos do calendário brasileiro, pode simplesmente ter jogado mal. É possível permitir que tudo isso seja parte da análise. Mas Willian foi embora, primordialmente, porque foi ameaçado, ofendido. Foi embora porque sua mulher, seu pai, suas filhas foram ofendidas, ameaçadas. Quando nem mesmo duas crianças são poupadas de uma boçalidade que ameaçamos naturalizar, normalizar, é porque chegamos a um quadro patológico de difícil reversão. Na noite de sábado, um Corinthians x Palmeiras já ameaçava jogar de vez no esquecimento a violência sofrida pela família de Willian. Até que Fágner cometeu um erro em campo e viu sua família ser outra vítima da cultura de abusos, quadro endêmico do nosso jogo.

No fim, aqui cultivamos a lógica de que a paixão justifica tudo e absolve todos, até os seres capazes de argumentar que Willian encontrou um argumento para justificar seu rendimento e sair de fininho. O Brasil, país violento que encontrou no futebol abrigo para boa parte do lixo que a sociedade produz, vai desumanizando, dia após dia, os profissionais do jogo. Dia após dia, o noticiário da conta de gente hesitante em viajar para cá.

Willian tem pouquíssimas razões para interpretar as ameaças que sofreu como gestos impensados de torcedores apaixonados e frustrados por resultados esportivos. É difícil, hoje, um atleta enxergar que a violência moral praticada no cotidiano do jogo seja inofensiva. Primeiro, porque nenhum trabalhador deveria ser obrigado a considerar normal conviver com ela. Segundo, porque no pouco tempo que passou no Brasil ele viu de tudo um pouco: num jogo sub-20 entre Palmeiras e São Paulo, jovens jogadores foram ameaçados de agressão no campo, onde uma faca foi encontrada; uma bomba explodiu num ônibus e, por muito pouco, não feriu gravemente o goleiro Danilo Fernandes, do Bahia; uma pedra foi lançada no ônibus do Grêmio, pouco antes de um Gre-Nal, e causou um traumatismo craniano em Villasanti. Na última semana, o São Paulo foi absolvido após torcedores fazerem gestos racistas; o Santos ficou sabendo que só lhe custará dois jogos com portões fechados a invasão de campo seguida por agressão ao corintiano Cássio. Pena a ser paga no ano que vem. No futebol brasileiro, sai muito barato ser violento, racista, homofóbico.

Mas, em meio à rotina de descontrole que nos faz flertar com uma tragédia, discutir se Willian jogou bem ou mal não é pior do que ser superficial. A saída do meia é só mais uma derrota, mais uma oportunidade perdida num futebol que tem mais dinheiro para contratar, mas é incapaz de acolher. O Corinthians ficou sem Willian, mas além de um ídolo, perdeu ótima chance de um posicionamento minimamente compatível com sua grandeza, com seu papel social. O vídeo gravado pelo presidente do clube, Duílio Monteiro Alves, é no mínimo desalentador.

Ele abre o comunicado dizendo que “infelizmente, eles não se adaptaram', numa referência à família do jogador. Ora, é a vítima da violência que deve se adaptar ou é o ambiente violento que deve ser repensado? É o jogador que deve se submeter ou são as autoridades e os dirigentes que precisam trabalhar por um ecossistema mais civilizado? Mais adiante, Duílio cita que se trata de “um jogador com custo elevado' e que fica chateado “por não ter Willian por mais tempo' e também porque “o rendimento não foi o esperado'. O momento em que o dirigente mais se aproxima do mundo real é quando diz que “por não estar feliz, Willian não teve o rendimento esperado'. A produção industrial de eufemismos dá a sensação é de um clube refém dos torcedores violentos, entregue, acuado.

Parece o velho de exercício de lavar as mãos e colocar nas costas da vítima todo o peso da ruptura. Simplesmente Willian quis sair. Não há uma só menção às ameaças e ofensas pessoais. Uma só palavra de solidariedade à família ou uma mínima insinuação de reprovação ao comportamento dos torcedores violentos. Ou o Corinthians não rejeita, em sua comunidade, a presença de gente assim?

Pode parecer repetitivo, mas sempre vale reforçar: os jogadores de futebol são as vítimas da permissividade que invadiu o jogo. Estamos a um passo de lamentar uma tragédia envolvendo um deles. E nem seria justo direcionar às vítimas algum tipo de cobrança. Mas cada episódio torna claro que não virá de autoridades públicas ou de dirigentes esportivos um mínimo gesto transformador, nenhum trabalho pelo fim da impunidade ou pela transformação da cultura de violência e intolerância que hoje é traço fundamental do futebol brasileiro. A única esperança reside mesmo nos jogadores. É hora de romperem com uma mistura de medo e passividade e agirem como classe, por solidariedade às vítimas mais recentes e às próximas. Precisam dar um grito de basta, nem que seja decretando que, por um momento mais ou menos breve, o futebol precisa parar.



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