Esportes
Barcelona 92: Zé reencontra titulares para celebrar 30 anos do ouro
Em encontro raro, técnico e pilares de conquista histórica conversam sobre caminho até o topo
| GLOBOESPORTE.COM / JOãO GABRIEL RODRIGUES E VINíCIUS RODEIO*
Por algumas horas, é quase como voltar no tempo. À quadra do centro de treinamento da CBV, em Saquarema, os sete conversam como se fosse em 1992. Trinta anos depois, os pilares de um feito histórico se reúnem pela primeira vez em tempos. Para comemorar as três décadas do ouro do vôlei nas Olimpíadas de Barcelona, Carlão, Giovane, Marcelo Negrão, Maurício, Paulão e Tande foram ao encontro de José Roberto Guimarães a pedido do Redação. Em um papo solto, contaram as histórias que marcaram uma geração e fundamentaram o caminho do esporte até o topo.
Os sete nem se lembram do último encontro. Os seis titulares da campanha que deu ao Brasil seu primeiro ouro olímpico em um esporte coletivo se cruzam por aí, vez ou outra. Mas a presença de Zé Roberto é mais rara. Diante das viagens com a seleção feminina, o técnico pouco vê os ex-pupilos. Algo tão difícil de acontecer que até brinca:
- Eles cresceram, né?
Mas o caminho até aquele 9 de agosto de 1992 não foi tão simples. Zé Roberto, hoje tricampeão olímpico, ainda não tinha currículo. Ex-jogador, havia trabalhado como auxiliar de Bebeto de Freitas, mas ainda faltava experiência aos 38 anos. Ao assumir o cargo na seleção, enfrentou certa resistência por um tempo.
- Eu até hoje eu não sei qual foi o sentimento de cada um quando eles souberam que eu ia ser o técnico da seleção. Mas o que eu via era assim (uma certa desconfiança). A gente começou a trabalhar, colocou os objetivos e começou desenvolver o trabalho. Ganha um jogo, perde outro, mas sabe quando você olha nos olhos de cada um deles e você percebe nitidamente que eles não confiam em você? Eu me senti assim. Mas é lógico, esses caras tinham sido treinados por um dos maiores treinadores do mundo, que era o Bebeto de Freitas. E aí vem um técnico novo, com nenhuma experiência, que tinha jogado com eles ou contra eles e aí assume a seleção brasileira?
De fato, não foi tão simples. Maurício já era um dos mais experientes daquele grupo. Havia jogado as Olimpíadas de Seul e, pouco antes, enfrentado Zé ainda dentro de quadra. Mas, aos poucos, se surpreendeu com a forma como o técnico encaixou o time.
- Para mim, também foi um pouco estranho e surpreende porque até então ele era jogador. Nós jogamos contra quando ele era do São Carlos em 1988. Foi um pouco surpreendente mesmo porque era companheiro de jogar contra, sabe? Quando ele chegou, disse o porquê veio. Porque ele já veio com as suas ideias e eu sempre falo que nós fomos o que nós somos hoje em dia graças a ele. Porque eu, como levantador, tinha uma orquestra na mão. Tande, Marcelo Negrão, Carlão, Paulão, Giovane. Então tenho certeza absoluta de que nós só fomos o que nós fomos porque ele conseguiu com a sua genialidade.
Naquela seleção, Zé montou um sistema fluido, versátil. Apenas Maurício, levantador, e Paulão, central, tinham posições fixas. Era um outro esporte, é verdade, ainda com o sistema de vantagem e sem a presença de líberos. Mas, ao encaixar uma geração nova, mas tão talentosa, o técnico ganhou a confiança de todos.
- Eu vou ser sincero. O Bebeto, eu tinha medo dele. Para mim, ter o Zé era muito melhor. A gente falava de igual para igual. Ele era mais parecido com a gente assim. O Bebeto era muito lá cima. Era “sim, senhor', “não, senhor' – lembrou Giovane.
- Eu sempre fui oposto. Desde moleque. Oposto, oposto, oposto. O Zé chega e fala “Pô, Marcelo, você precisa melhorar o seu bloqueio nas extremidades. Não é muito bom, você precisa melhorar'. Então, cara, você vai ter o Giovane, o Tande e o Carlão que podem jogar de extremidades, vai ajudar o teu bloqueio na extremidade e ao mesmo tempo você vai ter de vir atacando umas bolas. E o jeito que ele fala com a gente, o jeito que ele coloca para gente, você fala “P***, não tem como dizer não pra esse cara'. Como é que eu não vou? Ele motiva a gente – completou Marcelo.
O caminho do ouro
As coisas mudaram pouco antes das Olimpíadas. Durante a Liga Mundial daquele ano, Zé Roberto começou a encaixar o time em quadra. Entre vitórias e tropeços, conseguiu formar o grupo que iria para Barcelona. Ainda assim, nenhum deles acreditava no pódio.
- Nem a gente, nem ninguém. Saímos desconhecidos do Brasil. Totalmente. Só as pessoas que conheciam o voleibol conheciam a gente. Essa que foi a verdade – lembra Tande.
- A gente foi pensando em ficar entre os quatro, sei lá, fazer uma semifinal. Logo na primeira fase, a gente só pegou seleções difíceis – disse Carlão.
Aquele time, porém, tornou o caminho mais simples. A cada jogo, o Brasil se impôs. Na primeira fase, passou por todos os adversários com certa facilidade. Foram cinco vitórias e apenas dois sets perdidos. Em pouco tempo, o grupo deixou de ser desconhecido para virar febre no Brasil.
- Eu acho que agora a gente já viveu muita coisa depois daquilo, digo o vôlei brasileiro, outras conquistas. A verdade é que, para conquistar uma medalha, a gente tinha que ser bom para caramba. A gente fica nessas de muito humilde, muito isso, muito aquilo, mas a verdade é que a gente jogou para caramba. A nossa transformação assim como time – disse Giovane.
Naquela campanha, o jogo mais difícil não foi a decisão contra a Holanda. O Brasil cruzou com os Estados Unidos um pouco antes, na semifinal. Time a ser batido, a seleção americana buscava o tricampeonato olímpico.
- Foi o jogo mais forte, o mais tenso. Não dormimos, eu não dormi de noite. Até que na época tinha o discman. Eu olhava para o lado, o Giovanie estava com a luzinha vermelha e dizia: “Tô acordado'. Foi um jogo tenso. Dali, se a gente perde, a gente ia apagar toda a nossa história. O histórico era pesado – disse Paulão.
A dificuldade se apresentou logo no início. Perfeito até aquela semifinal, Maurício não conseguia fugir da marcação americana. Tudo o que tentava não funcionava. Até que Zé o tirou do transe. Pegou seu levantador pelo braço, orientou o caminho e fez o Brasil virar a partida rumo à final.
- Se vocês pegarem aí, o time ia para um lado, o Zé vinha comigo. Daqui a pouco eu tava desesperado e comecei a gritar. E ele: “Calma, pelo amor de Deus. Vai dar certo'. Perdemos o primeiro set e depois atropelamos – disse Maurício.
- Eu falei: “Olha para mim', pegando no braço dele, e ele saiu do transe. Sabe quando você está falando e a pessoa não está ouvindo, não está conseguindo? Aí, quando eu grudei no braço dele, eu senti que ele olhou para mim e eu abaixei a voz. O que você está fazendo, está certo. Mantém, só abre um pouco mais a bola – lembrou Zé.
- Você acredita, cara, no primeiro set nada dando certo e ele “Calma, o que você tá fazendo tá certo.'? – brincou Maurício.
A final
Naquele grupo, Amauri, reserva, era um dos mais experientes. Em Barcelona, fazia sua quinta Olimpíada. Prata em 1984, o central reuniu o grupo e pediu a palavra antes da final contra a Holanda. Todo mundo escutou.
- Acho que o ponto mágico nos bastidores que foi o Amauri que nunca falava nada, pediu a fala. De toda da minha geração, eu sou o único que estou aqui junto com vocês. O que vocês fizeram até agora, continuem – lembrou Tande.
- É que ele falou: “Passei por esse momento e a gente não estava dando muita importância para quadra, estava dando importância para o que ia acontecer depois. Se a gente ia conseguir, se não ia conseguir aquilo, se ia ter prêmio, se não ia ter. Entra lá e pensa em jogar'. Foi algo parecido com isso – disse Giovane.
O ouro veio. De time desconhecido a marco de uma geração, os campeões atraíram uma legião de fãs. Ali, o vôlei, que já havia alcançado marcas importantes na história do esporte brasileiro, se transformou em modelo.
- Eu sinto muitas saudades. Eu sou suspeito para falar porque eu sou apaixonado por eles. São caras que eu vou ser eternamente grato. Toda vez que eu encontro, eu tenho uma grande emoção de estar junto, de abraçar. A gente realmente é uma família e criou esse vínculo muito forte nas dificuldades, nas adversidades. E também nas horas boas, nas nossas alegrias, nos momentos em que a gente conquistou coisas muito legais. E que eles marcaram a vida do povo brasileiro no esporte. É um motivo de muito orgulho eles terem me dado a chance, terem me acolhido, me abraçado, me ajudado. Porque foi realmente isso que aconteceu. Eles foram tudo que um técnico como eu jovem poderia sonhar na vida um dia.
Outros trechos da conversa
O jogo contra Cuba na Liga Mundial
Zé Roberto: "Essa geração nunca tinha vencido Cuba. Aí a gente vai pra esse jogo. Dois a dois. Onze a oito para gente. E aí eu acho que era o Tande que estava sacando, o Sarmientos recepciona a bola e vem pra cima da rede. Bola que a gente chama de bola de cheque. O Carlão ataca a bola de cheque. Quando o Carlão atacou, viu que ele não ia chegar na bola, ele estava infiltrando para tentar executar, foi muito rápido o passe e alto. Quando ele viu que não ia chegar, ele puxa a rede por baixo, e o Carlão ataca e faz o ponto. O juiz acha mão na rede do Carlão. Todos nós corremos, tinha que ficar sentado, mas os meninos já tinham saído pra mostrar pra ele que não tinha sido mão na rede do Carlão, que tinha sido o Diago que tinha puxado a rede.
Aí quando eu fui, eu atravessei a quadra de Cuba. Quando eu atravessei, o Giovane veio correndo. Estava na posição 4, ele veio correndo pra me tirar do grupo e os outros vieram juntos. Aí depois que me segurou, eu virei leão (risos). Aí nós tínhamos tomado dois pontos. A mão na rede do Carlão que não tinha sido, o meu cartão vermelho, 11 a 10. Quando eu vou para o banco, eu penso assim: "Putz, perdemos o jogo por minha causa". Na bola seguinte, eu nunca vi o Giovane saltar tanto na minha vida. Mas uma raiva. A gente acabou ganhando um jogo depois de oito anos sem vencer. E ali eu acho que eles começaram a me olhar de outra forma. "Pô, esse cara é mais um maluco que veio brigar com a gente".
As defesas de Paulão
Paulão: - Ele enchia o saco, todo dia. De manhã, de tarde e de noite. Chegamos no treinamento. Todo mundo tira a joelheira. Tinha que tirar tornozeleira, tirar tênis. Todo mundo tirou. Que que houve, Zé? "Enquanto o Paulão tiver colocando o joelho no chão, ninguém usa joelheira". Pô, os caras quase me mataram. Lembra disso, cara? (aponta pro Maurício). Você que enchia o saco pra c***. Mas foi um divisor. Eu ia incomodar o time inteiro por causa de colocar o joelho no chão? A partir dali então, ele chegou pra mim um dia e falou: “O momento em que você começar a aumentar esses percentuais de defesa, você vai voltar para o time. Porque eu vou te tirar'. Pô, só por causa disso? Mas na Liga subiu e aí eu comecei a defender. A minha história tá documentada".
A importância de todos
Tande: - E a gente não pode esquecer o que esses caras representam. Se nós estamos hoje aqui, é por causa de todos eles. Todos os seis jogadores, Janelson, Jorge Edson, Douglas, Talmo, Pampa e Amauri. Aí que está a sensibilidade do Zé, de botar as pessoas que se parecem. Eu e Maurício no quarto. Pampa, que era muito amigo do Carlão. Giovane com Paulão, que dormiam mais cedo. Marcelo Negrão, com 19 anos do lado do Amauri, o mais experiente, a quinta Olimpíada, o único remanescente daquelas Olimpíadas.
A confusão do passaporte
Mauricio: Então, foi o seguinte (risos). A Liga Mundial tem todo ano, um dos campeonatos que nem antes, um dos mais importantes do ano. E toda vez que a gente viajava, o passaporte ficava com o Sammy (supervisor). Quando acabou, ele entregou para todos nós. Aí quando chegou no dia, eu fui. Quando perguntaram "cadê o passaporte", eu falei estava com o Sammy. Quando eu falei, eu já sabia que já tinha tomado, entendeu? Só que aí todo mundo dando entrevista, cheio de repórter. Aí o Zé tentou, todo mundo tentou para que eu pudesse ir. Mas ia chegar na Alemanha e não ia conseguir entrar, não tinha como. Só que ninguém ficou sabendo porque nós demos entrevista, eu entrei também lá na Polícia Federal. Todo mundo achou que eu tivesse ido embora eu com Janelson. Daí eu fiquei lá dentro esperando. Todo mundo foi embora do aeroporto. Eu e Janelson fomos embora. No outro dia que a gente embarcou.
Caixinha de atraso
Tande: - Resumindo, começamos a ter uma caixinha por atraso, por erro. Dez dólares um minuto de atraso. Não quero me estressar com ninguém. Para a gente não ter estresse, quem vai ser o dono da caixinha? Talmo. Aí todo mundo começou a brigar com o Talmo. Carlão pro Talmo: “Ô Talminho, calma aí.'
As superstições de Zé
Tande: - Zé deixava todo mundo louco com isso. Maluco. Fui falar que fui fazer a barba. “Zé, vou fazer a barba, me empresta um barbeador?'. "Vai fazer a barba? Não, não. Você fez a barba em algum momento da Olimpíada?". Eu falei não. "Então não, não vai fazer, esquece". Ele não deixava fazer.
Zé: - Eu fiz aniversário no meio da Olimpíada, foi dia 31 de julho. Aí o Amauri estava com a esposa dele, com a Rô e a Alcione também estava. Aí vamos jantar fora e tal. Nós pegamos o metrô e fomos pra Barceloneta, que é a estação antes de chegar na vila. E aí escolhemos o restaurante e tal. Quando a gente entra, o garçom que foi nos servir tinha corcunda. Eu estou na minha, aí o Amauri me cutuca. "O que foi Amauri? O que foi Amauri?". Reza a lenda que se a gente tocar na goba do corcunda e fizer um desejo, se realiza. Quando a gente foi sair, pagamos a conta e tal. Aí vamos tirar uma foto, eu e Amauri. E fomos lá e passamos a mão na corcunda. Acham que ia perder a chance? (risos).
Zé: - O vestiário foi assim. Quando a gente foi pra semifinal, já começou essa história. Nós só vamos jogar no vestiário de quem ganhou. Não vamos entrar no vestiário de quem perdeu, não. Aí jogou a primeira semifinal, e a nossa foi depois. Eu tinha feito amizade com a menina que era coordenadora dos vestiários. Eu falei com ela. Ela disse que não ia dar tempo de limpar o vestiário e tal. Eu falei que importava, a gente esperava lá fora, esperava o tempo que fosse preciso para limparem. Aí limparam. Na final contra a Holanda foi a mesma coisa. Foi de manhã, mas tinha tido a disputa de terceiro e quarto antes. E aí a gente esperou o time de Cuba sair, que tinha vencido o terceiro lugar, aí a gente entrou.
*Estagiário, sob supervisão de João Gabriel Rodrigues